10 de fevereiro | 2019

Tempos sombrios, tempo de ódio

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Do Conselho Editorial

Em homens em tempos sombrios, Hannah Arendt escreveu: “Mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação”.

As dúvidas mais profundas, os problemas mais graves e o que pode haver de mais perigoso na realidade política atual parece estar presente e com tendência a ganhar espaço no cenário nacional.

A banalidade ganha consideráveis espaços no poder enquanto se crimi­naliza o bom senso e a crítica saudável em nome da moral e dos costumes.

Sob o pretexto de confirmação de antigas verdades vêm se degradando a sociedade, se ampliando o totalitarismo e rebaixando à insignificância, a discussão por igualdade na conquista de direitos.

O Brasil, que em sua formação contou com um sem número de raças na composição de sua sociedade, observa uma quantidade de cidadãos e autoridades, descendentes de estrangeiros, o que é paradoxal, desfiando preconceitos e discursos de ódio aos refugiados e apátridas.

Vir de outro país significa perder casa, língua e trabalho.

A maioria das pessoas não sai do seu país por que quer, é forçada a deixar a própria casa e o próprio país e fica a vagar de país em país em busca de oportunidade e de restabeleci­men­to da própria vida deses­tru­tu­rada pela guerra ou pelo desemprego.

Em muitos países, assim como em parcela da população brasileira, não encontram respeito, já que atuam para que sejam excluídos e perseguidos e em alguns casos vítimas de violência e morte.

No ensaio, intitulado As Origens do totali­tarismo, Arendt escreve, referindo-se aos refugiados: “A desgraça de indivíduos sem estatuto jurídico não consiste em ser privados da vida, da liberdade, da busca da felicidade, da igualdade perante a lei e da liberdade de opinião, mas em não pertencer mais a nenhuma comunidade”.

Esta perda da comunidade comporta a expulsão da própria humanidade.

O que pode ser terrível no país dos papagaios, na terra brasilis é que um apelo aos direitos humanos também soa estranho visto que há uma campanha violenta contrária às instituições que garantem efetivamente tais direitos, por não reconhecerem que o mais fundamental dos direitos é o direito de ter direitos.

A análise que Arendt no ensaio Verdade e Política faz da mentira sistemática e do perigo que representa para a verdade efetiva se encaixa perfeitamente nos tempos atuais.

Pelo fato de que as verdades efetivas são contingentes e, portanto, o seu oposto é possível, é muito fácil destruir a verdade efetiva substituindo-a por fatos alternativos, ou seja, realidades alternativas.

Em Verdade e Política, ela escreve: “A liberdade de opinião é uma farsa, a menos que a informação efetiva não seja garantida, e os fatos em si sejam removidos da disputa”.

Uma das técnicas mais bem sucedidas para esmaecer a diferença entre verdade e falsidade é distribuir qualquer verdade como uma simples opinião: o que acontece mais ou menos diariamente.

As lideranças políticas estão seguindo com grande sucesso uma prática comum dos regimes totalitários do passado, onde se criava um mundo fictício de realidades alternativas.

Arendt identifica um risco ainda pior: “O resultado de uma substituição coerente e total de mentiras à verdade não é que agora as mentiras serão aceitas como verdade e que a verdade será denegrida como mentira, mas que o sentido graças ao qual nós nos orientamos no mundo – e a categoria de verdade versus falsidade está entre os meios mentais destinados a esse fim – é destruído”.

As possibilidades de mentir se tornam ilimitadas e muitas vezes encontram pouca resistência.

Muitos progressistas continuam perplexos com a indiferença do público diante de men­tiras desmascaradas com base na verificação dos fatos.

Mas Arendt tinha entendido como realmente funciona a propaganda.

As massas “se deixam convencer não pelos fatos, nem mesmo pelos fatos inventados, mas apenas pela compactação do sistema que promete abra­çá-las como uma sua parte”.

Os indivíduos que se sentem negligenciados e esquecidos anseiam por uma narrativa – mesmo fictícia – que dê um sentido à ansiedade que sentem e prometa uma espécie de redenção.

Os líderes autoritários se beneficiam amplamente explorando essas ansiedades e inventando uma história a que as pessoas queiram acreditar.

Uma história inventada que promete resolver os problemas de cada um tem muito mais aceitação que os fatos e as teses “racionais”.

Arendt não era uma Cassandra.

Não se limitou apenas a denunciar os riscos políticos, mas elaborou um conceito preciso da dignidade da política.

Graças à nossa capacidade de agir, estamos sempre em condições de dar vida a uma renovação.

O foco do pensamento de Arendt está precisamente na necessidade de assumirmos a responsabilidade de nossa vida política.

A sua defesa da dignidade da política representa um parâmetro de juízo importantíssimo para muitos de nós diante da situação atual, que vê a diminuição das oportunidades de participação, de ação em conjunto e de envol­vimento em um debate autêntico entre pares.

Deve-se resistir à tentação de nos afastar da política pensando que nada pode ser feito contra as feiúras, os enganos e a corrupção de hoje.

Por toda a vida Arendt se propôs a enfrentar e compreender realmente a escuridão dos nossos tempos, sem perder de vista a possibilidade de trans­cendência e de iluminação.

O cidadão deveria ter o mesmo propósito.

Este editorial foi escrito e adaptado a partir de artigo Richard J. Bernstein, filósofo americano que leciona em The New School for Social Research, cuja tradução é de Luisa Rabolini.

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