21 de junho | 2015

Ética e Moral não se vende no supermercado

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Do Conselho Editorial

Há uma pequena confusão na hora de se definir ética e moral para algumas pessoas que fundem uma na outra, o que não prejudica o debate se a intenção for positiva no sentido de que se postule mais ética e moral na sociedade em que se vive.

Apenas para localização do texto, as explicações sobre as diferenças que cercam uma e outra, para explicitar as sutis diferenças nada melhor que recorrer ao texto do professor doutor em literatura da UERJ Gustavo Bernardo que de forma feliz em seu blog em uma publicação de 2011 explica a diferença entre ética e moral e inicia a resposta contando uma história árabe.

Um homem fugia de uma quadrilha de bandidos violentos quando encontrou, sentado na beira do caminho, o profeta Maomé.

 Ajoelhando-se à frente do profeta, o homem pediu ajuda: essa quadrilha quer o meu sangue, por favor, proteja-me!

O profeta manteve a calma e respondeu: continue a fugir bem à minha frente, eu me encarrego dos que o estão perseguindo.

Assim que o homem se afastou correndo, o profeta levantou-se e mudou de lugar, sentando-se na direção de outro ponto cardeal.

Os sujeitos violentos chegaram e, sabendo que o profeta só podia dizer a verdade, descreveram o homem que perseguiam, perguntando-lhe se o tinha visto passar.

O profeta pensou por um momento e respondeu: falo em nome daquele que detém em sua mão a minha alma de carne: desde que estou sentado aqui, não vi passar ninguém.

Os perseguidores se conformaram e se lançaram por um outro caminho.

O fugitivo teve a sua vida salva.

O leitor entendeu, não?

Não?

A moral incorpora as regras que se tem que seguir para viver em sociedade, regras estas determinadas pela própria sociedade.

Quem segue as regras é uma pessoa moral; quem as desobedece, uma pessoa imoral.

A ética, por sua vez, é a parte da filosofia que estuda a moral, isto é, que reflete sobre as regras morais.

A reflexão ética pode inclusive contestar as regras morais vigentes, entendendo-as, por exemplo, ultrapassadas.

Se o profeta fosse apenas um moralista, seguindo as regras sem pensar sobre elas, sem avaliar as consequências da sua aplicação irrefletida, ele não poderia ajudar o homem que fugia dos bandidos, a menos que arriscasse a própria vida.

Ele teria de dizer a verdade, mesmo que a verdade tivesse como consequência a morte de uma pessoa inocente.

Se avaliada a ação e as palavras do profeta com absoluto rigor moral, teria que condená-lo como imoral, porque em termos absolutos ele mentiu.

Os bandidos não podiam saber que ele havia mudado de lugar e, na verdade, só queriam saber se ele tinha visto alguém, e não se ele tinha visto alguém “desde que estava sentado ali”.

Se avaliada a ação e as palavras do profeta, no entanto, nos termos da ética filosófica, é preciso reconhecer que ele teve um comportamento ético, encontrando uma alternativa esperta para cumprir a regra moral de dizer sempre a verdade e, ao mesmo tempo, ajudar o fugitivo.

Ele não respondeu exatamente ao que os bandidos perguntavam, mas ainda assim disse rigorosamente a verdade.

Os bandidos é que não foram inteligentes o suficiente, como de resto homens violentos normalmente não o são, para atinarem com a malandragem da frase do profeta e então elaborarem uma pergunta mais específica, do tipo: na última meia hora, sua santidade viu este homem passar, e para onde ele foi?

Logo, embora seja possível ser ético e moral ao mesmo tempo, como de certo modo o profeta o foi, ética e moral não são sinônimas.

Também é perfeitamente possível ser ético e imoral ao mesmo tempo, quando se desobedece uma determinada regra moral porque, refletindo eticamente sobre ela, considere-a equivocada, ultrapassada ou simplesmente errada.

Um exemplo famoso é o de Rosa Parks, a costureira negra que, em 1955, na cidade de Montgomery, no Alabama, nos Estados Unidos, desobedeceu à regra existente de que a maioria dos lugares dos ônibus era reservada para pessoas brancas.

Já com certa idade, farta daquela humilhação moralmente oficial, Rosa se recusou a levantar para um branco sentar.

O motorista chamou a polícia, que prendeu a mulher e a multou em dez dólares.

O acontecimento provocou um movimento nacional de boicote aos ônibus e foi a gota d’água de que precisava o jovem pastor Martin Luther King para liderar a luta pela igualdade dos direitos civis.

No ponto de vista dos brancos racistas, Rosa foi imoral, e eles estavam certos quanto a isso.

Na verdade, a regra moral vigente é que estava errada, a moral é que era estúpida. A partir da sua reflexão ética a respeito, Rosa pôde deliberada e publicamente desobedecer àquela regra moral.

Entretanto, é comum confundir os termos ética e moral, como se fossem a mesma coisa.

Muitas vezes se confunde ética com espírito de corpo, que tem tudo a ver com moral, mas nada com ética.

Um médico seguiria a “ética” da sua profissão se, por exemplo, não “dedurasse” um colega que cometesse um erro grave e assim matasse um paciente.

Um soldado seguiria a “ética” da sua profissão se, por exemplo, não “dedurasse” um colega que torturasse o inimigo.

Nesses casos, o tal do espírito de corpo não tem nada a ver com ética e tudo a ver com cumplicidade no erro ou no crime.

Há que proceder eticamente, como o fez o profeta Maomé: não seguir as regras morais sem pensar, só porque são regras, e sim pensar sobre elas para encontrar a atitude e a palavra mais decente, segundo o seu próprio julgamento.

Transportado para o dia a dia a interessante reflexão do professor doutor em literatura da UERJ Gustavo Bernardo pode se concluir que o exercício da ética e da moral está faltante na vida pública, na maioria das instituições, no dia a dia, na vida.

A impressão que se tem nestes tempos em que tudo é mercadoria, inclusive o próprio ser humano, que se entrega, que se vende, que se oferece no mercado, que em razão do ter abandona o ser, que chega a ser uma pena que ética e moral de boa qualidade não se venda no mercado.

 

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