12 de março | 2017

A linguagem “denuncia” quem somos

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Ivo de Souza

Em sua coluna (sempre de bom nível), o craque Tostão, Folha de S. Paulo, domingo, 5 de março de 2017, “Modismos e clichês, diz que o futebol está cheio (repleto) de modismos, clichês e lugares comuns.

Na verdade, a própria língua portuguesa (falada no Brasil) anda coalhada do que chamo de modismos.

Em certo sentido, o fato é positivo, pois todos sabemos que a língua é algo vivo em constante evolução, o povo é que cria o dinamismo do idioma, principalmente quanto ao discurso (fala).

Só não são bem-vindos os chavões, os clichês, os lugares comuns e, muito menos, o tal do modismo — que vem, chega e passa: “protagonismo juvenil”, “fazer a diferença”. E tantas outras expressões são exemplos de que os modismos podem sair de moda. Passam para um segundo plano: “em voga”, “na crista da onda”. Etc.

É interessante, já que abordei palavras do Tostão, observar o campo semântico onde “rolam” as palavras, quando a mídia se refere ao futebol, especialmente quando falam de uma partida em que os times são considerados rivais (não inimigos, é bom que se ressalte tal aspecto).

O vocabulário (futebolês) é repleto de termos que sugerem o tom bélico do “embate” em campo: batalha, mata-mata; enfrentar e encarar são verbos comumente usados. Parece que os atletas caminham para um duelo: é vida ou morte. E o esporte, senhores e senhoras, nada tem de guerra, batalha e combate, muito pelo contrário.

Esse “oba oba” da mídia, não há pesquisa científica que comprove, mas influencia o ânimo, dos “combatentes”, mexe com o moral do “guerreiro” (às vezes até a moral do atleta é atingida pelos torcedores, no calor da “batalha”). Os locutores esportivos, em geral, são um desastre.

E tem mais: morte súbita, rasgando (“entrou rasgando”), tal time “pega” o adversário em casa e tantas outras expressões do mesmo “calibre”.

A torcida, naturalmente, não vibra, “vai à loucura”, alguns até se denominam “um bando de loucos”. E a rivalidade vai num crescendo sem limites e acaba em violência e até mortes fora das “arenas” (antes eram estádios… o termo arena é também significativo).

É preciso, como diz Tusta, diferenciar essa linguagem agressiva das gírias criativas, engraçadas e já enraizadas no esporte bretão (caneta, chapéu, lençol, drible da vaca, ninho da coruja, cobertor, drible do elástico e tantas outras expressões linguísticas que cabem perfeitamente na linguagem sadia do futebol). São criativas e divertem o torcedor.

Tostão define as gírias como “uma linguagem peculiar, usada por alguns (muitos, diria eu) profissionais…são, geralmente, interessantes e engraçadas” — sempre usadas com muito bom humor (elas próprias são bem-humoradas). Algumas fixam-se no léxico e passam a constar de dicionários conceituados. Incorporam-se à língua de forma espontânea e natural. Enriquecem o léxico.

E o que dizer dos modismos que contaminam a língua e não querem, na verdade, dizer muita coisa: (sinistro, tal coisa é sinistra, tipo isso, tipo aquilo, com certeza, irado (no sentido de muito bom, algo radical, melhor dizendo): som irado, por exemplo. E esse fato não fica na seara (campo semântico) do futebol.

Ontem, houve expressões populares criativas, como as há hoje e haverá amanhã (o povo faz a língua evoluir, de acordo com o tempo em que vive, e o próprio decorrer do tempo se encarrega das mudanças no léxico e como os falantes de determinada língua se expressam.

Hoje há expressões (todas refletem o momento presente, o tempo presente) que estão na moda: empoderamento da mulher, pós-verdade, fatos alternativos, fake, fake news, demonização da justiça (ou do Judiciário), atitude republicana e um número sem conta de termos relativos ao campo semântico da tecnologia: deletar, formatar, startar, on line, printar, etc.

Quem conhece (um pouco que seja) a língua portuguesa sabe de sua complexidade e da riqueza de seu vocabulário (além do vernáculo há a contribuição da cultura linguística de outros : índios e negros contribuíram para o enriquecimento do léxico português — são inúmeros os vocábulos do tupi-guarani (que seria a língua brasileira?) nos topônimos, principalmente, e em muitos antropônimos: Guaraci, Jaci, Ubirajara, Iracema, Paraguaçu, Pindorama, etc., etc. Há, também, contribuições do inglês, do francês, do árabe e outras.

Retomando o que foi dito no início do parágrafo anterior, um “bom conhecimento” da língua impede que seus usuários se deixem levar pelos modismo linguísticos (muitos não duram mais que uma estação), usa o idioma pátrio com rigor, clareza e elegância e não “cai na onda” do “de grátis”, do estou “de boa”, “top de linha” e outras besteiras do gênero.

O preciosismo exagerado (isso é pra quem quer exibir erudição) e a fala como se fosse a escrita (a pessoa fala como quem escreve) vão, porém,  esbarrar no pedantismo, na afetação, no artifíciolismo linguístico.

O “bom uso” da “língua-mãe”, no entanto, é obrigação de todos os falantes dessa língua — é uma questão de respeito, uma forma de reverenciá-la (uma forma de amor à língua pátria, ao instrumento (código) mais usado na comunicação entre as pessoas. E mais: é fator importantíssimo de segurança nacional, de preservação da cultura literária, musical, científica, enfim, é tudo o que somos: palavra e palavra só.

Vale dizer que algumas pessoas usam muito mal a própria língua (português) por descuido, preguiça mental e falta de humildade para aprender; os profissionais da mídia têm obrigação de fazer o “bom uso” da língua, para que haja uma comunicação eficaz entre emissor e receptor (leitor, ouvinte). Não falamos aqui de rebuscamento, mas de simplicidade e correção (concordância, regência, vocabulário adequado ao que se pretende comunicar).

Em outra oportunidade, falaremos da linguagem oficial, burocrática (e da enxurrada de erros) da maioria dos políticos. A linguagem que fala, mas não diz: geralmente oca, vazia de significação: a nível de, junto à, onde (quando a expressão anterior (antecedente) não expressa lugar.

P.S.: Eis algumas palavras, expressões e nomes que traduzem (bem ou mal) o momento crítico e caótico que o mundo está vivendo: corrupção política, racismo, ambiente (clima, poluição, aquecimento global, efeito estufa…), autoritarismo, propina, ascensão da direita extremista, homofobia, Donald Trump, xenofobia, islamofobia, rede social, compartilhar, politização do Judiciário, digital, relacionamento virtual, intolerância, foro privilegiado, o diferente, delação premiada (agora chamada, eufemisticamente, de “colaboração premiada”), Sérgio Moro, etc. Ah, resiliência não pode faltar.

Em tempo: uma palavrinha que está começando voltar “à baila”: jararaca. (Pano rapidinho. E “vida que segue”…

 

Ivo de Souza é professor universitário, poeta, colunis­ta, pintor e membro da Real Academia de Letras de Porto Alegre.

 

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