20 de junho | 2021

A banalização da morte em tempos de Covid

Compartilhe:

“Mesmo diante de todo este cenário trágico, deste número imenso de mortos,
desta, que poderia ser chamada de tristeza imensa sem fim, há, e não
são poucos, os que colocam a sua vida a beira do fio
da espada da morte e buscam a contaminação”.

 

Do Conselho Editorial
Muito triste este tempo em que se convive com cadáveres que se vão sem ao menos ter o direito que deveria ser sagrado, de se despedir de seus entes queridos.

Desde que o mundo é mundo e que o homem é homem a mulher, mulher, ou traduzindo: desde que passaram a utilizar o pensamento para se comunicar reverenciar a morte e os mortos sempre foi fundamental.

Em muitos países ainda é.

No Brasil, fugindo da generalização, parece que parcela não pequena da população voltou ao estado de barbárie total e passou a tratar a morte, nestes tempos de pandemia, como algo banal, corriqueiro e necessário.

Pior do que não prantear a despedida de quase 500 mil brasileiros é se oferecer de forma suicida e irresponsável para ser infectado pelo vírus em festas, baladas, aglomerações ou na insistência estúpida de não respeitar medidas de segurança recomendadas pela ciência.

Contam as lendas africanas que os elefantes, quando sentem a morte chegar, abandonam a manada, e, guiados pelo instinto, vão para um lugar que só eles conhecem, um lugar onde estão os ossos dos antepassados.

Ali, sobre uma suposta extensão de vários hectares, os paquidermes se deitariam para dormir o último sono.

Há uma explicação cientifica para o caso que não será explicitada aqui, até porque quem crê na ciência poderá ganhar um pouco de tempo buscando a informação, já para os que não creem pouco importa qualquer tipo de informação, pois se alimentam da própria ignorância.

A lenda africana tem por objetivo fortalecer a ideia da importância dos rituais de despedida mesmo entre os paquidermes, o que dirá entre os humanos.

Entre os seres humanos há também rituais de despedida que nestes tempos estranhos não estão sendo respeitados em razão da pandemia.

O mais comum é o velório que se estende por horas em gesto significativo de que aquelas serão os últimos momentos em que a pessoa amada poderá ser vista no plano terrestre.

No Alto Xingu, tem o Kuarup que foi cancelado pela primeira vez em sua milenar história.

Talvez a mais conhecida entre as manifestações indígenas brasileiras, o Kuarup é um grande ritual sagrado que celebra os mortos de todo um ano, e envolve onze etnias do Alto Xingu.

É no Kuarup que os parentes encerram o período de luto pelos que morreram.

O coronavírus chegou ao Alto Xingu, e este ano não tem Kuarup.

Os Yanomamis, quando um membro da tribo morre sem doenças e problemas, conversam com a família e guardam as cinzas em uma vasilha.

Reúnem muita comida, muitos alimentos para fazer festa para se despedir novamente.

Normalmente, parentes de outras aldeias vão ao cerimonial.

Riem, choram, depois pegam as cinzas em uma vasilha e devolvem à mãe terra com respeito.

O candomblé também não passou imune às restrições da covid.

Com rituais fúnebres muito específicos que incluem o comunitário axexê e um preparo do corpo feito pelo babalorixá, seus enlutados estão, como todos, sem poder exercer seus símbolos tradicionais.

Saindo do Brasil há o exemplo da tradição oriental dos japoneses que oferecem incenso, frutos, flores e comidas para aqueles que já se foram, como forma de agradecer tudo o que os familiares fizeram em prol da família e da sociedade.

Neste período trágico, infelizmente, parcela da população, que antes clamava por se despedir de seus parentes, já aceita com aparente normalidade que as pessoas não mais existam e dão pouca ou nenhuma importância aos rituais de despedida.

As despedidas fazem com que as pessoas sensíveis a morte dos próximos consigam acomodar parte de sua tristeza em relação a partida.

Sem estes rituais cria-se em alguns a sensação de vazio, a morte parece ficar fora do lugar.

O luto tem a capacidade de acomodar as dores para que o ser humano consiga se recuperar.

Mesmo diante de todo este cenário trágico, deste número imenso de mortos, desta, que poderia ser chamada de tristeza imensa sem fim, há, e não são poucos, os que colocam a sua vida a beira do fio da espada da morte e buscam a contaminação.

Para estes se não há respeito ao ritual da continuidade da vida, não deve haver também respeito ao ritual de despedida, muito menos receio da morte.

Basta ver a insistência da não utilização de máscaras, a resistência a não aglomerar e a negação a vacina.

Quase 500 mil já se foram e muitos outros irão, entre eles, inocentes bem intencionados que a mente assassina dos irresponsáveis, por não se prevenirem, conseguiram infectar.

Infelizmente a sociedade brasileira terá que conviver com a indiferença desta gente que não se cuida e coloca a vida do semelhante em risco.

Infelizmente a sociedade terá que conviver com a ausência dos rituais de despedida por culpa da demência de alguns que respeitam a vida menos que os elefantes e banalizam a morte de tal forma que estão abaixo do nível de consideração que um paquiderme merece.

Compartilhe:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do iFolha; a responsabilidade é do autor da mensagem.

Você deve se logar no site para enviar um comentário. Clique aqui e faça o login!

Ainda não tem nenhum comentário para esse post. Seja o primeiro a comentar!

Mais lidas