27 de abril | 2014

O mangue-Boy curupira

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“Quando eu morrer quero ficar

Quando eu morrer quero ficar,

Não contem aos meus inimigos,

Sepultado em minha cidade,

Saudade”.

(Mario de Andrade, Café – 1942)

 

Quando um grande músico deixa os palcos, fecham-se as cortinas, arrumam-se as luzes, e interrompem-se os sons. O silencio toma conta do recinto, a plateia aguarda uma nova peça ansiosa pelos novos, não tanto novos, que virão. Assim caminha-se a cena. Assim, acenam-se pelos cantos, a espera de uma voz, vozes na imensidão do “mar azul”. A mistura abrasileirada dos ritmos, danças, gestos e compassos, das cordas arranhadas, das batidas que se ouvem dentro dos pulmões deixam memórias inestimáveis que tocam profundamente o espírito da inquietude, laboriosamente orquestrada por mãos tão singelas, que até mesmo os mais incautos são tomados pelos ouvidos a estranheza em construção. Toninho tornado, o mangue-boy na capital do folclore, curupira nato, quando não, boca nervosa de um bamba jamais esquecido por suas serenatas seresteiras de jardins, varandas, cortiços e sobrados, aquele que diria se “alguém perguntar por mim” diz que fui por ai, levando um violão debaixo do braço, e que para em qualquer botequim, e dorme sentado, e canta, e canta, canta por todos os cantos, entoa sob tons e diversos xaxados: o baião e o carimbó, samba da roça com forró pé-de-serra, no café pula bambu, dança a mula sem cabeça, o boi-de-mamão…. cade o Gabirú?

A música deixa falhas. Os acidentes permitem absorver as escalas. O samba é redondo. Enganam-se os doentes do pé. De tom em tom, sustenido e bemol, Toni boy deixou seu legado como gostava de dizer, no “Brasil-Nação”. Cantou a história dos imigrantes, produtores de café. Apreendeu com os carcomanos, com quantas sacas se fazem uma canoa na pausa do trabalho do campo, relembrando os tempos da colheita na pátria distante. 

– “Óia o cafézal”, aêêê…., bunito!

O passado aflora no folclore. Seja mito, tradição, ou palavreado passado de boca em boca, de gesto em gesto, traduzidos em um longo e fértil período histórico enraizado em suas distancias, não seria espantoso, tanto quanto inesperado, o desafio lançado sobre a beleza e a contradição que juntos do tempo acompanha o espaço.

Não obstante, a memória do cangaço no Brasil setentrional; as revoltas oitocentistas, tendo o balaio da província sua expressão; o “mate” do sul esquentando a cuia de chimarrão; a indústria de norte à sul, recortada pela cana-de-açúcar e a laranja, remontam o passado dos derrotados e vitoriosos, daqueles que ainda vestem-se do progresso ultrajado sob trajes – na medida – medievais, que permearam, e que ainda permeiam resquícios da velha casa grande e senzala, cujas canções compostas se encontram carregadas.

Mas, por outro lado, poder-se-ia dizer que o “saber comum” transmitido pela cultura popular, embora não traga em si mesmo a abertura ao “novo”, que, dito de outro modo, representa a complexidade do mundo moderno em suas relações especificas e contraditórias, ainda sim transporta em seu seio, aquilo que nós, internacionalistas do situacionismo, chamamos de psico­geografia da afetividade.

As experiências difundidas nos encontros e festivais, que neste ano completa meio século de existência, contribuem de algum modo na integração latino-americana e por que não dizer mundial. Povos das mais variadas nações quando pisam na cidade da menina moça, para alem de suas apresentações e representações parafolclóricas recheadas de historicidades simbólicas, fora dos palcos, abrindo suas caixinhas de pandora, revelam em suas cartas trazidas nas bagagens, onde o suor, em gotas, pede passagem, a arte recíproca do homem coletivo.

Alias, da ultima lembrança deixada pelo nosso sábio boy, restou nosso primeiro encontro fora de época, àquele que, quando eu, ainda menino-moço, ingressava no espectro musical da cidade, buscando aprender com o mestre, os acordes pestaneiros de um violão. Distante do “orgulho de ser paulista”, foi com o “Frevo Mulher”, de um nordestino arretado, cantarolando Zé Ramalho, que ousei cantar a canção.

“É quando o tempo sacode a cabeleira, a dança toda vermelha…”

Internacionau Cheguidali, 24-04-2014, Olympia, Café 1959.

 

João Victor Moré Ramos é mestre em Geografia Humana, co-fundador da Interna­cionau Cheguidali.

 

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