17 de agosto | 2014

Não há como falar em folclore

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Do Conselho Editorial

O que foi visto até agora no Recinto do Folclore não permite que alguém lúcido, com um mínimo de bom senso, escorado em experiências anteriores, possa falar de folclore com entusiasmo, com empolgação.

Ir prestigiar o evento para quem já participou de muitos foi o mesmo que assistir aos suspiros finais de um doente terminal que, com enormes dificuldades respira por aparelhos, que vira as órbitas oculares e busca alcançar nos céus uma catapulta que o traga de volta a terra.

O que deveria, sereno, deitado no leito de morte, apenas suspirar e se deixar levar por sonhos de maresias, encantamento de ter visto estradas, gro­tões, fantasias, luas, cantadores, magias, encantados, assombros, assombrações, batuque, pé, bandeiras, espraiados, histórias, lendas, gingados, ca­te­retês, esperneia em meio a convulsões sonoras, se nega ao esquecimento.

Metade de sua alma, canções e cantos, poemas perdidos nas dobras da vida que vem guardados nas algibeiras dos peões compõem-se com o antigo e com a poeira dos estradões, o urro das on­ças pantaneiras coladas no dorso dos marruás.  

Moças bonitas e brejeiras, dançantes fitas, samba de roda, maracatu, frevo, baião, catira, quadrilha, rei, reisado, congo, folias de enternecer, coisas de admirar.

E capoeiras, bumbas meu boi bum­bá, o auto da jandainha, boi cachimba, fandango, lapinha e pastoril, junta os caboclinhos para os últimos cantos e louvações, para o doente expirar.

Vem pra roda araúna, traga bandeirinhas, capelinha de melão, espontão e bambelô que é pra esta pobreza de festa de novo se alevantar.

Bota chocalho, pandeiro, viola, ata­ba­que, berimbau, tambores, caixas, taróis e ganzás, guarda-chuvas coloridos, triângulo, acordeons, flauta doce, para o nosso povo de novo dançar.

Mas, o que vem como a cobra grande se arrastando pelos brejos, man­qui­tolando em uma perna só como Saci-Pererê, dirigido por mulas sem cabeça, dificilmente atravessará a noite do tempo com glórias.

É preciso urgente um curupira que retire desta gente pobre, fútil, o enfermo folclore que morre lentamente, que se esvazia como balão que perdeu cor e perde ar, e não consegue alçar voo, e não consegue respirar.

Não há como falar em folclore, pois folclore já não há.

O que há é apenas um esqueleto daquilo que já foi alguma coisa a ser respeitada no universo cultural um dia, hoje não há nada além do pedantismo abusivo dos que se negam a admitir os seus fracassos e em volta da UTI alardeiam que o cadáver está ressuscitando novamente.

Falta, força, falta alma, coração, alegria que voou nas asas de um magnífico professor. Agora falta tu­do, falta alento, sobra um sopro, um ventinho que nem de perto lembra o sucesso que passou.

Deixou marcas, registrou histórias e saudades, hoje dorme lento e sonso nas cordas das violas que tocam desatentas como a relembrar as velhas glórias.

Não há exagero no falar, porém, se pode com muita certeza afirmar.

Folclore brasileiro é defesa intransigente da cultura popular.

É o teatro que de livre espontânea vontade o povo escolheu.

Ritmos, dança, motivo de associação, melodia e diversão.

Literatura falada, escrita em folhetos, cantada nas feiras.

Cantadas por sertanejos, por cegos, violeiros em desafios.

Registrando acontecimentos religiosos, seca, sertões, sofrimentos.

Alegria, dor, angustia, perplexidade, tempestade, tempo ruim.

Estiagem, inverno, primavera, outono, verão e tempo bom.

Literatura da oralidade, poesia da realidade, autêntica em sentimentos.

Coisas que vem da alma, flores que desabrocham do coração.

E estas coisas todas por aqui já não se pode falar que há.

E morre lentamente na capital da produção do álcool de cana.

Uma festa que nasceu popular, por isto a cidade está de porre.

Morre e vai se encontrar no céu com o professor José Santana.

O que foi um dia, o maior de todos, o grande Festival do Folclore.

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