05 de fevereiro | 2017

Mariza, um exemplar humano raro, espécie, que me parece, em vias de extinção

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Willian Zanolli

Nunca imaginei passar por um momento destes, e olha que tenho história.

Ver parcela da população comemorando ou desejando a morte de alguém, que nunca ocupou cargo público, que sempre foi discreta e respeitosa com todos, por questões de ordem política, foi o fundo do poço.

Pessoas desejando que a pessoa fosse tratada pelo SUS e médicos dos convênios disponibilizando nas redes informações sigilosa sobre a saúde do paciente, e outros médicos desejando a morte de quem, em tese, deveriam salvar, foi preocupante.

O país, em termos de civilidade e humanidade, parece estar caótico, desceu ao precipício das relações de ódio por razões que não justificam tal comportamento, se é que há razões a justificar o ódio.

Marisa Letícia, ao longo de sua vida, pautou sua presença pública, de forma muito elegante, pela discrição, pelo silêncio que falava muito e pelo respeito total a hierarquia aos cargos que o marido ocupou.

Lula metalúrgico, presidente do Sindicato, preso pela ditadura militar e Marisa cumprindo o papel de esposa extremada, sem estardalhaço, medo, revolta ou ódio, acompanhou com preocupação e serenidade aquele período da prisão, solidária à luta de Luiz Inácio.

Esteve presente e apoiando Lula na presidência do Sindicato antes e após sua prisão sem que haja registros de uma que fosse, participação que possa depor contra sua imagem de esposa e companheira solidária das horas de riso e dor.

Assim foi quando da fundação do Partido dos Trabalhadores.

Lembro aqui da sugestão da montagem de um partido de operários lançada pelo poeta Mário Pedroza e abraçada pelo metalúrgico presidente do Sindicato da categoria.

Mariza Letícia costurou, elaborou a primeira bandeira do partido, baseada no desenho atual, da estrelinha com as Palavras P e T que foi o ganhador de um concurso interno elaborado pelo partido que nascia.

Sei desta e de outras histórias, por ter enviado a pedido do companheiro Fernando do Ó Velloso colaboração para este concurso, no qual foi ganhador o que evidenciava a estrela e o PT gravado no centro dela.

Mariza, até onde sei, também se encarregou da “silkagem” das camisetas que eram vendidas nos encontros para angariar fundos para o partido.

Lula lançou sua candidatura a governador, foi deputado federal, candidato a presidência derrotado várias vezes e presidente da república e Mariza Letícia ao lado dele, serena, discreta, silenciosa, apoiando, estimulando. 

Quando se posicionava, era com a coerência e o equilíbrio de quem tinha perfeita noção de que estava ao lado de um dos maiores líderes do mundo.

Nunca ocupou cargos públicos em razão da eleição do marido, razão pela qual cobrar dela o que quer que seja referente a obrigações do gestor público, por ter sido esposa de um, é de uma imbecilidade cavalar.

Os últimos dias de vida reservaram a esta guerreira uma infeliz caminhada na direção do conhecimento da maldade humana quando se dispõe a busca ou retomada do poder por questões de ordem econômica.

Pulou do anonimato de quem adorava o sitio “Los Fubangos” para investigações que em nada conduz a imagem daquela senhora desprovida de ostentações que convivia por anos com o mesmo simples companheiro com quem ela dividia os hábitos que em nada foram modificados.

Como se não tivessem direito a nada ou coisa alguma atribuíram ao casal um apartamento que não é deles, conforme apurou a denúncia, alguns pedalinhos, uma canoa e um sítio de amigos que frequentavam nada condizentes com denúncias de autoridades menores que colecionam milhões em sua conta bancária no exterior.

Sofreu como poucos as injustiças lançadas contra si e sua família, e no meio da pressão sua força não resistiu ao movimento de ódio e adoeceu.

E esta foi a fase pior para nós todos que lutamos, como lutava ela, e continuará lutando Luiz Inácio, por um mundo mais humano, mais justo, solidário, onde as desigualdades entre os seres sejam menores.

Uma médica compartilhou informações a respeito de seu estado de saúde, exames foram disponibilizados na rede em total desacordo com o disposto no Código de Ética Médica que dispõe:

 Art. 102- Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente.

E a Constituição diz.

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

No entanto, para surpresa de nós outros, a médica não só contrariou o Código de Ética Médica como a Constituição Federal.

No bojo desta situação cruel e desumana alguns médicos emitiram opinião que fere de morte tanto o Código de Ética da categoria quanto o juramento de Hipó­crates que firmaram e no qual juraram defender e cuidar do ser humano acometido de enfermidade.

O capitulo IV, Direitos Humanos, do Código, diz que é vedado ao médico:

Art. 23 – Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.

Cidadãos comuns movimentados pelo ódio em razão de posicionamento político acompanharam as críticas e foram muito deselegantes no trato com alguém que cumpria o seu ritual de despedida.

E, neste aspecto, senti parte do meu povo bem menor do que imaginava que fosse.

Não se justifica de forma alguma que alguém deseje o mal do outro em razão de discordâncias políticas, já que não justifica, de maneira alguma, se desejar a morte do outro por motivo algum.

Em princípio, todos devem ser respeitosamente tratados, fora isto é o estado de barbárie, de selvageria.

Poderia, fosse o caso, concordar com as críticas em relação ao tratamento dispensado por hospitais particulares e o SUS, e colocar a disposição para exigir melhoras na rede pública, como sempre fiz e faço.

Compreendo, no entanto, que esta responsabilidade hoje é de outro gestor que até agora não acenou para que isto ocorra ou venha a ocorrer, contrário a isto, acena com propostas que, em tese, podem piorar o que não é bom.

E não escrevo isto para tecer críticas ao atual governo, sim, para evidenciar que ficou bastante claro para mim, que o posicionamento das pessoas não se referia a melhoras no SUS e sim a magoa de que alguém que elegeram por inimigo fosse tratado na rede particular e não no serviço público.

Ora, qualquer cidadão de senso mediano, sabe muito bem que são direitos conferidos de forma legal a todos que são, ou foram presidentes da república, não havendo nenhum privilégio nesta conduta.

E que este procedimento é praxe na maioria dos países capitalistas não ocorrendo apenas em países ditos comunistas onde todos se tratam na rede pública, o que reforça a ideia de ódio e preconceito, como se apenas o ex-presidente Lula e sua esposa não pudessem ter este atendimento.

A regra não é nova e não foi implantada no governo do ex-presidente Lula, tanto que outras primeiras damas e ex-primeiras-damas já usufruíram deste direito e ninguém se opôs a isto, o que reforça em mim a sensação de que as manifestações são fruto de ódio, o que torna algumas pessoas muito torpes e sem visão de urbanidade.

Mariza se foi, e o que entristece é que muitos estão de forma vil e vulgar infelizmente comemorando a morte de alguém com quem nunca tiveram contato e que se não fosse a esposa do maior líder da América Latina não teria contra si o ódio imbecil de tantos desprovidos de sensibilidade para compreender a morte como algo a ser muito respeitado.

Noção de cristandade e de amorosidade zero.

Enquanto isto, Lula dá mostras excepcionais do grande homem e líder que é, tratando com educação e gentileza seus adversários, que polida ou falsamente foram se solidarizar com sua dor.

Dá mostras de humanidade realizando o desejo de Mariza de doação de órgãos para que a vida continue pulsando em outros que podem até divergir de si.

E nas ruas a comoção de milhares que lamentam a morte de Mariza Letícia.

E nas redes sociais outros tantos choram e lamentam a ida de um ser humano maravilhoso, destes que infelizmente parece que estão em vias de extinção em um mundo em que a disposição da eliminação dos adversários parece estar crescendo.

E são os milhares e milhares de pessoas que navegam na direção dos sonhos, das esperanças, da poesia, do se encontrar no outro, nas diferenças, do se aplaudir na expectativa de crescimento do próximo e na ilusão de que o mundo pode ser melhor que a mesquinhez de gente que aniquila o discurso contrário e tenta impor a fala única que faz com que tenhamos resistência nesta hora para continuar a travessia.

Mariza Letícia se foi, deixando atrás de si uma vida recheada de ações em que nunca, em momento algum, manifestou ódio mesmo aos que a perseguiram tanto por ser esposa de quem era.

Só por isto, ter sido gente, não perdido as características de ser humano que luta em favor da espécie, nestes tempos perturbados, mereceria o reino dos céus.

Willian A. Zanolli é ar­­tista plástico, jornalista, estudante de Direito e po­de ser lido no www.willian­zanol­li.­blo­gs­pot.com.

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