29 de setembro | 2013

Era uma vez… duas crianças

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“Este artigo foi publicado no ano passado, edição de abril, como nada mudou, acrescentamos o nome de Pedro Henrique no artigo, em forma de homenagem póstuma e para que as pessoas se conscientizem sobre a gravidade do que ocorre na saúde pública local”

Willian A. Zanolli

Que este dia nunca mais se acabe, que não se faça tirar a noite eterna na alma desta mulher que chora, como tantas outras e tantos outros, o destino desta cujo corpo desce a sepultura enquanto a alma sobrevoa a névoa de tristeza que se instalou no coração de toda alma bondosa desta comunidade.

Esta mãe que se debulha em prantos, amparada pelo pai que semidestruído busca força nas suas entranhas para suportar a imensidão do vazio que o penetra, para não deixar que o universo da tristeza invada para todo o sempre o mundo que foi diminuído do seu lar.

Esta mãe, que como tantas outras, via um “cisquinho” de gente olhando e sorrindo da e para a vida, observa nesta hora o maior de todos os silêncios.

Sabe, tem certeza, que não verá crescer aquele toquinho de gente, aquele “cisquinho” não brincará de roda, nem andará de bicicleta, muito menos espantará as pombas, ou puxará o rabo do gato; não abraçará com ternura o cachorrinho de estimação, não se lambuzará com sorvetes, não tomará chuva no cangote em dias ensolarados.

Não acompanhará a novela deitado no colo da mãe ou do pai, não fará estripulias, nem queimará mais em febre, não pedirá doces e “guararás”, não vai brincar ou brigar ou fazer birras com outras crianças.

Escola, nunca mais, brinquedos não terá, e cada vez que vier saudosa sua sombra despertar seus pais e parentes do adormecido esquecimento, inevitavelmente rolarão lágrimas pelo que não foi permitido que tivesse sido.

De tudo que a vida se enfeita, se engalana, desde o girassol que acompanha as voltas do astro rei, ao sabiá que fura frutas em laranjeiras, a abertura das flores dos algodoeiros, o perfume dos cafezais floridos invadindo serenas e úmidas madrugadas, até a tristeza profunda que a Ave Maria costuma trazer à hora do lusco fusco, não será permitido vivenciar a esta que prematuramente foi obrigada a se despedir do mundo.

O universo das lágrimas todo chora a dor de se despedir desta que não irá torcer pra time algum, não assistirá novelas, nem cantará canções deste e de outros tempos carregadas de uma emoção, que nunca, mesmo nas mais tristes, se comparará a angustiante tarefa de se despedir de alguém que começava a engatinhar na direção dos seus dias futuros que foram bruscamente interrompidos.

E todas as mães que compreendem a extensão da dor que se abrigou no coração daquela, e todos os pais que se não vivenciou na pele, pelo menos sabe o quão dolorido é nunca mais poder apertar no peito, da maneira mais carinhosa possível, aquela coisa fofa e sorridente que enchia de alegria a sala, a cozinha, o quarto, o mundo, estará lagrimejante pela dor do outro que por extensão de humanidade pode e deve ser sua.

Ontem, dia nublado, em que as perdizes se recolheram mais cedo, que a sinfonia do dia cantou solene espiritual canção de despedida, dia em que o sol, que é pai, se recolheu mais cedo angustiado, em conflito, e a lua que é mãe veio enegrecida de luto, pois tinha partido do planeta terra a que veio pra ser mas não foi.

Nada canta e nada se move quando os anjos se despedem, e ontem foi um dia que deveria não ter sido.

Dia em que o perverso, o maldoso gesto de não amar intensamente a todos de forma igualitária e justa carregou para todo o sempre o sonho de muita gente, e deixou tantos outros de olhos mareados e umedecidos, e a cidade, a parte humanizada pelo menos, com o sentimento de impotência, de poder tudo e de não poder nada diante da morte que extingue o tempo que poderia ser vivido.

Ontem foi como se tivessem entrado no jardim florido da casa de alguém muito feliz e des­truído, e transformado em deserto a ilusão e a esperança que floriam por ali.

A vida segue e prossegue para todos, menos para Rafaela e Pedro Henrique, que a insensibilidade pública transformou o sonho em pesadelo vivenciado e lamentado pelo lado justo da sociedade.

Neste instante, flutuando pelas ondas entristecidas da cidade, enquanto seu corpinho cumpre a tarefa biológica que será comum a todos, Rafaela, e Pedro Henrique, talvez observem o quanto eram e poderiam ser amados por aqui, e lamentam ter que se despedir de forma tão abrupta deste mundo que com todas as falhas humanas pode ser acolhedor.

Os que ficaram, nós outros, entre os quais me incluo, oraremos por vocês, e para que todos aqueles que de uma maneira ou outra estão indignados, deprimidos, entristecidos com o trágico fato que levaram vocês, para que encontrem serenidade e paz para continuarem prosseguindo nesta caminhada em que a bondade e a perversidade existem, e por sinal, se fez presente no caso de vocês.

Oraremos também, para que se faça justiça, que fatos lamentáveis como estes não mais ocorram, mesmo que não creiamos nos homens não deixamos de crer em Deus.

Este Deus bondoso que os recebeu de braços abertos e feliz, dois anjos a mais a enfeitar os céus.

Este Deus que com certeza cuidará de vocês de forma mais carinhosa, que nós homens, descuidados e imperfeitos, que por medos e omissões não exigimos do homem público mais carinho, mais eficiência, mais comprometimento, mais capacitação, e mais responsabilidade no trato com a vida e por isto choramos por Rafaela, por Pedro Henrique e por tantos outros dos quais fomos obrigados a nos despedir antes que cumprissem sua jornada histórica.

Fique com Deus Rafaela e Pedro Henrique, por enquanto, adeus.

Willian A. Zanolli é artista plástico e jornalista e se entristece muito com as repetições da vida que conduzem ao trágico e não encontram eco na alma desumana dos políticos.

 

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