31 de janeiro | 2016

Cultura

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Ivo de Souza

De vez em quando (ou quase sempre), o sr. Ferreira Gullar retorna ao mesmo tema: arte. O próprio poeta já disse que, por não suportar a vida, o homem precisou da arte para não morrer de tédio. Mais ou menos isso, ou seja, a vida (realidade hostil) já não bastava ao ser humano. Daí o aparecimento das artes em geral. A preocupação recorrente (ou o incômodo) é o que é arte e o que não é. Uma questão extremamente complexa, revestida das mais variadas definições (ou tentativas de defini-la). Não se chega facilmente a um consenso. Se é que isso é possível.

Em seu texto (Folha de São Paulo, 24 jan., 2016), o tema arte se faz novamente presente. O título do texto Arte descartável já deixa evidente que o sr. Gullar considera a existência de uma arte não-descartável (“… manifestações anteriores fundadas precisamente no saber fazer.”), isto é , para o poeta Gullar há, hoje, uma arte (“os  problemas das artes plásticas de hoje”), caracterizada pelo não-fazer (?).

A arte contemporânea, segundo Ferreira Gullar, não se apoia necessariamente numa linguagem. Em que se apoiaria então? Em uma não-linguagem (a ausência de uma linguagem já não seria uma forma de linguagem?). E cita Marcel Duchamp como precursor desse tipo de expressão. Pa­ra Duchamp, “arte será tudo o que eu disser que é arte”, ou seja, pregava uma liberdade total na composição da obra de arte. É famoso o urinol que Marcel con­se­guiu que fosse trans­forma­do em obra de arte. O uri­nol de Duchamp é famoso e intrigante. É arte? Não é?

Os chamados artistas contemporâneos fariam a mesma coisa ao colar um tubarão numa tela ou um esqueleto de um outro animal qualquer (arte que dispensaria o domínio (técnica) de uma linguagem). Mas, como diz o próprio Gullar, a arte não se faz apenas de técnica mas de talento (“uma qualidade especial que se costuma designar como talento”). Que “qualidade especial” seria essa? Fica a desejar, aqui, a definição do que seja talento. Essa arte (“em que os artistas não fazem a obra, mas usam coisas já existentes”) é a chamada instalação, tipo de arte contra a qual seu Gullar sempre se insurge. Arte seria, então, produto (‘fruto”) da elaboração de uma linguagem. Nesse caso (instalações), não haveria arte.

Segundo Ferreira Gullar, longe de exigir do artista, de sua expressão artística, rigores de normas e princípios, coisas do passado. É a favor da liberdade de criação e da inovação – legado da revolução impressionista (final século 19). Parece, aqui, haver uma incoerência de ideias do autor (as instalações não teriam como características básicas a inovação e a criação?).

Seria a arte contemporânea fruto da valorização da tecnologia industrial em detrimento do fazer artesanal.

E chega, nosso caro poeta, a dizer que a arte acabou, se considerarmos que o ato criador dispensa a elaboração de uma linguagem. Seria o fim da arte.

Para Gullar, hoje (nos dias de hoje), tudo é expressão (“uma mancha, um gra­ve­to, o esqueleto de um gato colado na tela…”), mas nem toda expressão é arte. E cita obras que são verdadeiramente arte (obras-primas de Da Vinci e de Cézanne) e lamenta que alguns artistas continuem a apresentar o que é apenas uma “sacação” descartável – como os produtos comerciais de hoje (todos descartáveis) como se fora obra de arte.

O assunto renderia, ainda, muito pano pra manga, mas resumindo a ópera. Arte descartável (supérflua) não é arte. É coisa de quem não domina uma linguagem e, por isso, não consegue elaborar (trabalhar) essa linguagem.

 

P.S.: Nós que Nos Amávamos Tanto, Feios, Sujos e Malvados e Um Dia Muito Especial, de Ettore Scola, são três obras de arte do cinema.Scola misturava em suas obras-primas lirismo, humor e crítica social. É o “como fazer” (talento, invenção, criatividade); muitos cineastas usam os mesmos ingredientes em seus filmes. E não são considerados obras de arte. E aí? Scola responde: “…sempre busquei me inspirar numa regra do neorrealismo, seguir o homem.”

A propósito, o grande Ettore Scola faleceu no dia 19 de janeiro, aos 84 anos, em Roma. Ah! Ia me esquecendo de O Baile.

É bem ressaltar que, além do lirismo, da política, do humor, da boa música, Ettore Scola trabalhava sempre com bons atores: Vittorio Gassman, Marcelo Mastroionni, Sophia Loren, entre outros do mesmo gabarito. Que viva Ettore Scola!!!

Ivo de Souza é professor universátario, poeta, colunista, pintor e membro da Real Academia de Letras de Porto Alegre.

 

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