17 de abril | 2016

Chegar até aqui vivo, crítico e sonhador, foi difícil

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Ednilson Quarenta

Se esquecerem eles, os golpistas de plantão, de que todos nós exercemos com sabedoria nossa memória.

Não somos daqueles que, emburrecidamente, ainda teimam em nomear a tragédia de 31 de março de 1964 como uma revolução.

Não esquecemos do país que herdamos nos anos 80.

Minha geração assistiu inválida o derretimento das instituições públicas e da concentração de renda.

Aprendi já naquela época, com as mulheres que batiam panelas vazias na zona sul da periferia de São Paulo, o que tinha sido aqueles 20 e poucos anos de ditadura para a população pobre da metrópole.

Acho que foi por isso que estranhei melancolicamente as manifestações “tefal” nas varandas gourmet.

Ainda criança acompanhei meu pai na missa organizada pela Pastoral Operária em memória à morte do Santo Dias, em uma empresa aqui perto da minha casa.

Saibam, eu estava no Largo Treze de Maio quando se iniciaram os primeiros saques em Santo Amaro, tudo isso no rescaldo final do Governo Figueiredo.

Lembro-me com detalhes, quando as grades do Palácio do Bandeirantes tombaram pelas mãos de trabalhadores e trabalhadoras em agonia contra o desemprego e a carestia.

Pouco depois, já com a consciência política despertando, me engajei na Campanha pelas Diretas; o fato me custou a saída compulsória de um tradicional colégio particular da cidade e a conclusão desoladora do 3º ano, naquilo que tinha restado de uma escola pública na região de Campo Limpo em São Paulo.

Ao lado de outros amigos, e com muito mais cabelo, chorei desnorteado naquela fria e chuvosa noite na Praça da Sé, quando em vigília assistimos incrédulos, voto a voto, a derrota da emenda Dante Oliveira.
Portanto, sou daqueles que passou quase toda a adolescência e o ingresso na juventude, em reunião ou gritando em alguma esquina “fora daqui o FMI”.

Foi por isso que comemorei como um gol do Palmeiras, o dia em que nós finalmente conseguimos quitar a dívida com esse maldito fundo e se dar ao luxo de até emprestar algum dinheirinho pra eles.

Com muitos outros amigos ajudei a fundar um partido. Entre uma estrelinha e outra, perdemos um monte de eleições.

Mas aprendi com alguns velhos companheiros, nas aulas de formação política, em uma garagem improvisada lá no Parque Arariba, como tinha sido difícil chegarmos até aqui vivos, críticos e sonhadores. 

Graças a Deus não perdi nenhum parente ou amigo na ditadura.

Mas desde moleque descobri que muitas famílias e amigos perderam.

Foi assim que entendi o significado da palavra solidariedade e compromisso. 

Enfim, aos desavisados que justificam a atual política golpista com um dicionário espúrio de eufemismos escrotos, fica aqui o meu honesto e sincero repúdio.

Nossa história é cruel e representativa de exemplos em que a democracia foi achacada.

Por isso, no aniversário do dia 31 de amanhã, vou sair as ruas. 

Tal qual o personagem 35 do conto “Primeiro de Maio” de Mario de Andrade.

Mas diferente dele, que não encontrou quase ninguém naquele dia, eu irei encontrar milhares de pessoas, de histórias parecidas como minha ou não.
Uma gente que brilha e que tem poesia no olhar. 

Uma gente que não acredita em saídas torpes, atalhos obscuros ou em soluções difusas e escusas.

Nossa força social não vêm da mídia, mas sim porque todos acreditamos na democracia, quando ganhamos ou quando perdemos.
Temos orgulho de nossa história.

O resto é o velho travestido de novo, como bem nos alertou Marx no século XIX.

Ednilson Quarenta é professor doutor em história pela Universidade de São Paulo.

 

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